Poemas Escolhidos



Obs.: Público Cativo foi publicado por Oficina Editores, Rio de Janeiro, 2007 e lançado na XIII Bienal Internacional do Livro no mesmo ano.

Trecho do Prefácio

"(...) na mestria com que lida com metáforas, e na fluência com que transita por elas, fica expostamente visível o quilate da obra.
O autor começa de onde muito poeta sequer imaginou aproximar-se.
(...)"

Leila Míccolis

Escritora de livros, cinema, teatro e televisão

Um

.
Vou comprar um relógio novo


Deveria estar vivendo
cinquenta anos atrás pelo menos.

Nunca sou moderno o suficiente,
sou sempre ridículo
(transtornos e retornos
de um pequeno menino complacente),
e essa adaptação forçada me irrita:

obrigam-me a correr
de desespero,
cruzar sinais vermelhos
(os amarelos são sempre ridículos
como eu),
capotar, voar, tremer.

E nem estou com pressa.

_______


Afasia


Não entendo mais meu nome de perto,
perdi meu endereço, minha referência nativa.

Nem sei em que idioma desconverso.

_______


Limítelis

2 Fraqueza

Mas não penses que sou ingênuo,
pois que sou fraco.
E bem sei que é preciso ser forte
para ser ingênuo.

Mais de um

.
Léxicos

A)

Caminhando pela vida reparo seres e coisas.
Dia desses, passando pela rua,
vi uma palavra olhando-me como filhote indefeso.

Peguei-a com carinho,
mas ela me mordeu.

É preciso ter cuidado com as palavras

............

Cá)

Dito para mim umas palavras estranhas
entre as entranhas verbais
de cada asserto.

Há mais erros que acertos.

_______


Sou então teu copo d´água


venta tudo o que tens pra dizer
chove tudo o que tens pra chorar

mas depois chama o tempo bom
para de dizer
para de chorar
querida tempestade.

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Q-brado


de mim
cato os cacos que caem nos cantos da casa
quando não estás

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Perdão ou o nexo de sentir


se chorares
beberei de tua lágrima meu veneno

humildemente

matarei a sede
que tenho de mim
depois de morrer contigo

Além do mais

.
Recíproco


em traduzir a índole
do sangue: o rosto
fumegante exógeno banido:
coisa melhor que viver
é ter-se atrás da pele
um desnexo
o truque reflexivo
de regurgitar a si mesmo:

em dissuadir o esforço ido
vou-me entregando
à submersão de latitude
é o que faço - é assim
que disfarço o disfarce
ainda bem
que a poesia me existe

e me insiste

_______


Mr Street


inventa-se um poeta
como se inventa o dia-cheio de fome
e sede de toda espécie
humana
de expressão de arte ingênua de rua
de beijo de querência de encontro
ou de qualquer que seja o tipo
de escorregadio equilíbrio

há vezes (e são muitas)
que ele se inventa mesmo é chorando

eu não sei
se lapido sintaxes
para agradar os denotativos transeuntes
(da terra exata)
ou se me torno o tolo
que sempre fui
cuspindo maluquices insípidas
no piche em chamas que leva longe

ele nem sabe se quer ir longe

_______


Homem discutindo a relação


viajo e trepido estranho
minha cara
na abertura de teus lábios claros
e na fluência de teu idioma raro

lá moram as lendas
os termos
os contratos

muito a celebrar
nas noites de insônia
se se conseguir despertar

_______


Com os pés na cabeça


entreguei-me a trabalhos forçados
para ser liberto

quantas vezes mais fugirei de minha fuga
e perseguirei a mim mesmo?

_______


Mascarágua


claridades
vão me apagando
os olhos
a boca
os cabelos internos

preciso estar inteiro
na minha dissolução

o tempo empresta as mãos
ao trabalho árduo
e faz com que me esconda
entre os dentes da cabeça
no espaço entre a língua
e o movimento do queixo

dentro do sangue
que escorre na saliva

posso fazer sempre o mesmo
mas nunca sou o mesmo

iludo como um rio ilude